Quando o sofrimento vira herança: como pobreza cultural server ao poder

“Quando a pobreza é transformada em cultura, o povo involuntariamente defende o seu sofrimento.”
— Olívio Nkilumbo

Essa frase do deputado angolano Olívio Nkilumbo vai além de uma crítica política: ela é uma radiografia de um fenômeno profundo que atinge muitos países africanos e além. A pobreza, quando incorporada como parte da identidade de um povo, perde o status de injustiça. Ela vira algo “normal”, esperado, até mesmo sagrado. O povo, cansado de lutar, passa a proteger o que o oprime não porque quer, mas porque aprendeu que não há alternativa.

Esse estado de aceitação coletiva não surge por acaso. Ele é produzido, alimentado e estrategicamente mantido. E é aqui que entra a face mais perversa dos regimes autoritários: eles não apenas se aproveitam da pobreza eles a fabricam.

Precariedade planejada: um povo refém do pouco
Os regimes autoritários e os políticos oportunistas aprenderam algo terrível: quanto mais precária for a vida de um povo, mais fácil é manipulá-lo. A insegurança seja ela alimentar, educacional, médica ou econômica gera dependência. E a dependência gera medo. O povo passa a ver os líderes não como servidores públicos, mas como únicos provedores possíveis da sobrevivência.

É o jogo da escassez: primeiro, o sistema destrói o que poderia dar autonomia ao povo escolas de qualidade, saúde acessível, produção local, empregos estruturados. Depois, oferece paliativos: um saco de arroz, um emprego precário, uma bolsa temporária, sempre em troca de silêncio e submissão.

Essa é a forma mais deplorável de dominação moderna: transformar a fome em estratégia política e o sofrimento em moeda eleitoral.

Foucault: o controle como forma de governo

O filósofo francês Michel Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, explica como os sistemas de poder modernos não precisam mais usar a violência direta para controlar as massas. Eles fazem isso por meio do controle dos corpos, da linguagem, das instituições e, principalmente, da percepção.

“O poder não se exerce, ele se infiltra.” Michel Foucault

Nos regimes autoritários, esse poder se infiltra através da normalização do sofrimento. O povo passa a achar “natural” estudar em escolas sem professores, esperar meses por atendimento médico ou viver sem emprego fixo. O poder se torna invisível mas está em todo lugar, moldando até os desejos e as expectativas das pessoas.

Bourdieu: a miséria simbólica e a dominação invisível
O sociólogo Pierre Bourdieu aprofunda essa análise ao mostrar como a pobreza também se reproduz através dos símbolos e da cultura. Em sua obra A Miséria do Mundo, ele explica que as classes dominantes mantêm seu controle não só pela força econômica, mas pela imposição de uma visão de mundo em que o pobre acredita que seu lugar é aquele mesmo.

“A violência simbólica é aquela que se exerce sobre um agente social com sua cumplicidade.” Pierre Bourdieu

Ou seja, a pobreza não é só falta de recursos é também a falta de consciência de que se pode sair dela. O sistema ensina o pobre a se sentir inferior, a desconfiar de sua própria capacidade, a ter vergonha de questionar. E com isso, muitos defendem aquilo que os destrói.

A perversidade máxima: o opressor que entrega medalhas

E como se não bastasse, o povo ainda aprende a idolatrar o próprio opressor. Aquele que destrói sua dignidade é o mesmo que aparece como herói nas festas nacionais, nas promessas de campanha e nos palanques armados em meio à miséria. O político que causou a escassez é o mesmo que entrega medalhas àqueles que conseguiram sobreviver a ela.

O povo passa a celebrar sua resistência como se ela fosse mérito do governo, quando na verdade ela é uma denúncia contra ele. Ser forte na adversidade vira um troféu e o opressor ainda se apresenta como “aquele que sempre esteve ao lado do povo”, quando foi ele quem transformou a vida em luta constante.

Essa é a vitória simbólica do sistema: fazer o oprimido agradecer pela própria opressão.

Romper o ciclo da dependência

Romper essa lógica exige muito mais do que caridade ou discursos populistas. Exige uma reeducação da consciência popular, onde o povo entenda que a pobreza não é destino nem identidade: é uma consequência direta de escolhas políticas e de sistemas de poder que se recusam a abrir mão dos seus privilégios.

Enquanto o povo continuar acreditando que “é assim mesmo”, os que se beneficiam dessa crença continuarão governando como se fossem indispensáveis. Mas nenhum governo que precisa manter o povo refém da miséria para se sustentar merece ser chamado de governo é um sequestro institucionalizado.

A consciência é a verdadeira revolução

Como disse Paulo Freire, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.”
E como nos alertou Michel Foucault, “onde há poder, há resistência.”

A resistência começa por saber que viver com dignidade não é luxo é direito.
Que governar não é dar esmolas é garantir condições.
E que pobreza não é cultura é violência política disfarçada de tradição.

É hora de encerrar esse ciclo perverso.
É hora de parar de agradecer pela sobrevivência e começar a exigir a vida.
E acima de tudo, é hora de reconhecer quem entrega medalhas pelo sofrimento porque, quase sempre, foi ele quem criou a guerra.

Nota: Este texto foi desenvolvido a partir de uma reflexão originalmente publicada nas redes sociais do deputado angolano Olívio Nkilumbo, cuja frase inspiradora “Quando a pobreza é transformada em cultura, o povo involuntariamente defende o seu sofrimento” motivou este aprofundamento analítico e crítico sobre o papel da pobreza na manutenção do poder político.

Henda Ya Xiyetu
Criador de Opinião

“Sou um criador de opinião , sempre trazendo reflexões e perspectivas sobre temas importantes que impactam nossa sociedade. As opiniões expressas são pessoais e buscam provocar reflexão crítica e construtiva.

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