A guerra na Ucrânia, iniciada em 2022 com a invasão russa, reconfigurou profundamente o cenário geopolítico mundial. Mais do que um conflito localizado, ela expôs fragilidades nas relações internacionais, reabriu feridas históricas da Guerra Fria e acendeu alertas sobre o retorno da lógica dos blocos. A Rússia, ao tentar redefinir a sua esfera de influência, enfrentou não apenas a resistência ucraniana, mas também uma resposta unificada do Ocidente, liderada pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Esta resposta, embora inicialmente diplomática e económica, evoluiu para um apoio militar sem precedentes, levando Moscovo a elevar o tom e considerar o conflito como uma guerra indireta contra a NATO. Tal polarização coloca o mundo num perigoso tabuleiro onde pequenos erros de cálculo podem ter consequências globais.
O envolvimento da China, embora ainda distante do campo de batalha europeu, torna-se cada vez mais relevante. Pequim mantém uma posição ambígua: não condena abertamente a Rússia, mas evita envolvimento direto, enquanto reforça sua aliança estratégica com Moscovo. Por outro lado, as tensões entre China e Estados Unidos, especialmente em torno de Taiwan, aumentam a sensação de que estamos diante de uma nova bipolaridade mundial. A União Europeia, pressionada a alinhar-se com Washington, enfrenta dilemas estratégicos: manter sua autonomia diplomática ou seguir o bloco atlântico. Se a China decidir dar um apoio mais assertivo à Rússia — seja militar ou logisticamente — a Europa será forçada a posicionar-se de forma ainda mais firme, aprofundando um confronto que já não é apenas regional, mas sistémico.
Outro fator preocupante é a corrida armamentista silenciosa que tem ganhado força. Diversos países europeus estão a aumentar os seus orçamentos de defesa, reativar fábricas de armamento e preparar as suas populações para cenários de guerra prolongada. A própria Alemanha, historicamente cautelosa desde a Segunda Guerra Mundial, declarou um “Zeitenwende” — uma viragem de época — assumindo uma postura mais agressiva em matéria de segurança. A Rússia, por sua vez, ameaça reiteradamente com o uso de armas nucleares táticas caso o seu território ou soberania seja colocada em risco. Numa conjuntura onde diplomacia e moderação cedem lugar à retórica bélica e ao nacionalismo, o risco de um conflito alargado, mesmo que não planeado, aumenta exponencialmente.
A interdependência económica entre a China e o Ocidente — especialmente a Europa — tem sido até aqui um fator de contenção. No entanto, essa interdependência está a enfraquecer com a tendência crescente de “desglobalização”. O redesenho de cadeias de abastecimento, as sanções tecnológicas impostas à China, a formação de alianças militares e económicas alternativas (como os BRICS ampliados) e a crescente desconfiança mútua tornam o cenário mais instável. Uma eventual escalada entre Rússia e NATO, se coincidir com um conflito no Indo-Pacífico envolvendo Taiwan, poderia forçar as potências a escolher lados, fragmentando o sistema internacional e criando frentes simultâneas de confronto — uma característica marcante das guerras mundiais do passado.
Apesar de todos os sinais de alerta, uma guerra mundial ainda não é inevitável. Há canais diplomáticos ainda abertos, há consciência das consequências catastróficas de um conflito global, e há pressões internas — económicas e sociais — que atuam como freios aos líderes das grandes potências. No entanto, o perigo reside exatamente na soma de pequenos passos rumo à escalada, na normalização da guerra como ferramenta política, e na erosão das instituições multilaterais. A guerra na Ucrânia pode ser apenas o início de um ciclo mais largo de confrontos geoestratégicos se o mundo não encontrar rapidamente uma nova arquitetura de segurança internacional que acomode o equilíbrio de poder atual sem recorrer à força. O futuro está em aberto — e é precisamente isso que o torna tão perigoso.